A teologia soteriológica medieval.
Esses era um dos maiores temores do próprio Lutero. Em diversos momentos de sua vida, podemos vê-lo sendo açoitado pelo medo de não ser suficientemente bom para merecer o perdão divino. Lutero fazia penitências severas, confessava-se regularmente, tudo isso para aplacar o temor de não ser salvo. Contudo, por mais que se esforça-se, sentia cada vez mais temor. A virada de entendimento só veio quando Lutero, ao estudar a carta de Paulo aos Romanos, se deparou com a frase do apóstolo que diz: "o justo viverá da fé". Ou seja, a salvação não seria alcançada por méritos humanos, mas era um ato da graça de Deus alcançado por meio da fé, não seria pelas obras, para que ninguém se gloriasse, mas seria única e exclusivamente pela fé em Jesus Cristo.
Essa foi a maior contribuição moderna de Lutero, pois ele introduziu uma nova visão sobre a salvação, uma visão que contrastava profundamente com a soteriologia católica que perdurara por mais de mil anos. O medo de não acumular méritos suficientes para ser salvo havia possibilitado à Igreja Romana o controle das massas, dominando-as através do temor de um Deus de justiça, já que somente a Igreja, por meio de seus representantes, poderia fornecer aos fiéis os meios necessários para assegurar sua salvação. Esse medo de não ser suficientemente digno de ser salvo permeou toda a cristandade medieval.
Embora Lutero, com essa nova visão teológica da salvação, não tivesse a intenção de romper com a Igreja, ele desejava reformá-la, libertando a doutrina católica da visão meritocrática da salvação e retornando-a às Escrituras, que definem a salvação como obra da graça divina, alcançada pela fé em Cristo Jesus somente.
Não pretendo, neste texto, aprofundar a distinção entre a "teologia da cruz" de Lutero e a "teologia da glória" desenvolvida na Igreja Romana, principalmente por Tomás de Aquino. No entanto, para entendermos as diferenças entre essas duas correntes teológicas, vale destacar a seguinte explicação:
A teologia da glória é centrada no homem e induz à superestimação do poder e da capacidade naturais humanos. A teologia da cruz revela a verdadeira condição dos seres humanos, como pecadores desamparados e alienados de Deus, necessitando desesperadamente do plano de salvação criado por Deus: a cruz de Cristo. A teologia da glória sugere que os seres humanos podem se elevar a Deus por seus próprios esforços, promovendo projetos humanos de salvação própria e especulação teológica. A teologia da cruz, por outro lado, proclama que os seres humanos são totalmente dependentes de Deus e incapazes de descobrir algo a respeito dEle sem Sua auto-revelação. Essa teologia conduz ao discipulado marcado pelo sofrimento em nome de Deus e do próximo.
Esse novo foco da salvação na cruz de Cristo permeia todo o pensamento teológico de Lutero. Ele enfatiza a pecaminosidade humana e a dependência da graça e misericórdia divinas para a salvação. Essa graça e misericórdia escapam ao controle humano e não podem ser compreendidas racionalmente, sendo acessíveis apenas pela fé. Em outras palavras, não há nada que o ser humano possa fazer para merecer essa graça e misericórdia de Deus; na verdade, ela é oferecida gratuitamente a todos os que creem.
Ao olhar para a Igreja Romana, Lutero via essa teologia baseada na meritocracia humana (teologia da glória). Ele desejava que toda essa base teológica fosse abandonada, sem, no entanto, destruir ou dividir a Igreja. A visão de Lutero era a de uma reforma das doutrinas soteriológicas (teologia da cruz) e de outras, sem que a Igreja Romana deixasse de ser a Igreja.
O estopim da reforma: as indulgências.
Para encurtar o tempo do fiel no purgatório, existiam as indulgências, que eram certificados garantindo a remissão de parte do castigo a ser cumprido no purgatório, em troca de alguma boa ação (inicialmente, as indulgências foram criadas como incentivo para as pessoas irem às Cruzadas) ou de uma doação em dinheiro para uma boa causa. Os papas argumentavam que, como chefes da Igreja na terra, podiam usar o “excedente” das boas ações dos santos para emitir indulgências. Esse sistema já havia sido criticado por alguns pensadores, especialmente humanistas, muito antes de Lutero.
A partir de 1515, os questionamentos de Lutero começam a ganhar mais força. As indulgências foram vistas por muitos como um projeto de arrecadação de fundos para a construção da nova Basílica de São Pedro em Roma. Na Alemanha, a venda das indulgências ficou a cargo de um dos mais venais príncipes-bispos, Albrecht de Brandenburgo, que retinha uma parte das receitas para pagar os banqueiros que haviam financiado sua compra do arcebispado de Mainz. À frente da campanha estava o frei dominicano Johann Tetzel, que conduzia o negócio de forma eficiente, mas com um apelo materialista e grosseiro, usando o famoso slogan propagandístico: “Toda vez que uma moeda soa no cofre, uma alma sobe do purgatório ao paraíso.”
Esses métodos desonestos deixaram Lutero horrorizado, não só pela forma como Tetzel agia, mas também pela reação popular, que parecia ignorar completamente a necessidade de um verdadeiro arrependimento para obter o perdão genuíno. Isso só reforçou em Lutero a disposição para questionar os complexos mecanismos rituais exigidos para adquirir “mérito” aos olhos de Deus, levando-o a começar a pensar que a fé seria o único requisito para a salvação.
Dado que a Igreja, e especialmente o Papa, parecia não ter intenção de conter os abusos na venda das indulgências, focando apenas no lucro, sem considerar o arrependimento autêntico dos pecadores, Lutero começou a questionar seriamente se a Cúria estava apta a governar o "barco da cristandade" ou se ela própria necessitava de uma reforma profunda.
Na parte II, veremos como Lutero enxergava a questão dos sacramentos e do livre exame da Palavra de Deus, outros pontos que o levaram a romper com a tradição católica romana.