A Reforma Protestante completará 507 anos em 2024. Em 31 de outubro de 1517, data considerada inaugural da Reforma, Martinho Lutero afixou na porta da catedral de Wittenberg as famosas 95 teses, que, na verdade, eram tópicos para debate acadêmico de teologia a serem discutidas na universidade da cidade.
Nesses tópicos, Lutero levantava questões que colocavam em xeque muitas das doutrinas da Igreja Romana, dentre elas a doutrina das indulgências. Neste breve texto, abordaremos a Reforma dentro de sua perspectiva teológica, explorando quais pontos da doutrina católica Lutero questionava e como essas questões influenciaram os rumos da Reforma. A primeira a ser analisada será a doutrina da salvação, a soteriologia.
A teologia soteriológica medieval.
Ao longo dos séculos XI ao XVI, a teologia católica romana seguiu um caminho no qual defendia que o homem, para garantir sua salvação, deveria cooperar para assegurá-la. Ou seja, através de "boas obras", o cristão, juntamente com a graça divina, alcançaria méritos que o levariam diretamente ao céu, sem a necessidade de passar pelo purgatório para purgar seus pecados antes de alcançar o descanso eterno. Essas boas obras podiam incluir participar das Cruzadas para libertar locais sagrados do domínio muçulmano, praticar penitências, realizar obras de caridade, confessar-se a um sacerdote para obter o perdão, fazer vultuosas doações a igreja católica quando morresse, e até mesmo comprar indulgências, que ofereciam o perdão papal, diminuindo a estadia no purgatório ou livrando o fiel falecido dele.
O medo da morte e consequentemente da perda da salvação, era um dos maiores temores dos homens e mulheres do medievo. Viviam em constante temor se de fato haviam feito o suficiente para serem salvos. Em uma época em que a média de vida era de 35 anos, e podia-se morrer por quase qualquer coisa (doenças, fome, guerras...), a morte fazia parte do cotidiano, e juntamente com ela a incerteza de que se merecia ser salvo.
Esses era um dos maiores temores do próprio Lutero. Em diversos momentos de sua vida, podemos vê-lo sendo açoitado pelo medo de não ser suficientemente bom para merecer o perdão divino. Lutero fazia penitências severas, confessava-se regularmente, tudo isso para aplacar o temor de não ser salvo. Contudo, por mais que se esforça-se, sentia cada vez mais temor. A virada de entendimento só veio quando Lutero, ao estudar a carta de Paulo aos Romanos, se deparou com a frase do apóstolo que diz: "o justo viverá da fé". Ou seja, a salvação não seria alcançada por méritos humanos, mas era um ato da graça de Deus alcançado por meio da fé, não seria pelas obras, para que ninguém se gloriasse, mas seria única e exclusivamente pela fé em Jesus Cristo.
A teologia de Lutero visava combater a ideia central do catolicismo medieval de que a salvação poderia ser, juntamente com a graça, garantida por méritos próprios. Sua descoberta não era apenas nova, mas também extraordinária, pois abalava os próprios fundamentos da ética cristã. A recompensa e o mérito, que por tanto tempo haviam sido considerados a motivação básica de qualquer ação humana, perderam a eficácia. As boas obras, que a doutrina da Igreja considerava indispensáveis, foram destituídas de sua base nas Escrituras. Essa reviravolta afetou não só a fé e a justiça, mas toda a vida e, por isso, teve de ser repensada. Nos anos seguintes de confrontação e conflito, o objetivo era um só: desvendar as implicações dessa descoberta e garantir que fossem amplamente conhecidas.
Essa foi a maior contribuição moderna de Lutero, pois ele introduziu uma nova visão sobre a salvação, uma visão que contrastava profundamente com a soteriologia católica que perdurara por mais de mil anos. O medo de não acumular méritos suficientes para ser salvo havia possibilitado à Igreja Romana o controle das massas, dominando-as através do temor de um Deus de justiça, já que somente a Igreja, por meio de seus representantes, poderia fornecer aos fiéis os meios necessários para assegurar sua salvação. Esse medo de não ser suficientemente digno de ser salvo permeou toda a cristandade medieval.
Embora Lutero, com essa nova visão teológica da salvação, não tivesse a intenção de romper com a Igreja, ele desejava reformá-la, libertando a doutrina católica da visão meritocrática da salvação e retornando-a às Escrituras, que definem a salvação como obra da graça divina, alcançada pela fé em Cristo Jesus somente.
Não pretendo, neste texto, aprofundar a distinção entre a "teologia da cruz" de Lutero e a "teologia da glória" desenvolvida na Igreja Romana, principalmente por Tomás de Aquino. No entanto, para entendermos as diferenças entre essas duas correntes teológicas, vale destacar a seguinte explicação:
A teologia da glória é centrada no homem e induz à superestimação do poder e da capacidade naturais humanos. A teologia da cruz revela a verdadeira condição dos seres humanos, como pecadores desamparados e alienados de Deus, necessitando desesperadamente do plano de salvação criado por Deus: a cruz de Cristo. A teologia da glória sugere que os seres humanos podem se elevar a Deus por seus próprios esforços, promovendo projetos humanos de salvação própria e especulação teológica. A teologia da cruz, por outro lado, proclama que os seres humanos são totalmente dependentes de Deus e incapazes de descobrir algo a respeito dEle sem Sua auto-revelação. Essa teologia conduz ao discipulado marcado pelo sofrimento em nome de Deus e do próximo.
Esse novo foco da salvação na cruz de Cristo permeia todo o pensamento teológico de Lutero. Ele enfatiza a pecaminosidade humana e a dependência da graça e misericórdia divinas para a salvação. Essa graça e misericórdia escapam ao controle humano e não podem ser compreendidas racionalmente, sendo acessíveis apenas pela fé. Em outras palavras, não há nada que o ser humano possa fazer para merecer essa graça e misericórdia de Deus; na verdade, ela é oferecida gratuitamente a todos os que creem.
Ao olhar para a Igreja Romana, Lutero via essa teologia baseada na meritocracia humana (teologia da glória). Ele desejava que toda essa base teológica fosse abandonada, sem, no entanto, destruir ou dividir a Igreja. A visão de Lutero era a de uma reforma das doutrinas soteriológicas (teologia da cruz) e de outras, sem que a Igreja Romana deixasse de ser a Igreja.
O estopim da reforma: as indulgências.
Podemos afirmar que a teologia de Lutero se inicia como resultado de sua discordância com a problemática doutrina das indulgências propagada pela Igreja de Roma. No sistema salvífico católico romano, uma das obrigações era a confissão a um padre, que assegurava o perdão de Deus. Contudo, o pensamento legalista da Idade Média sustentava que ainda restava um “saldo devedor” pelo pecado. Parte desse saldo poderia ser quitada em vida, por meio de penitências. O restante seria pago no purgatório — um lugar onde todas as almas, exceto as dos extremamente maus e as dos realmente santos, sofreriam temporariamente antes de serem admitidas no paraíso, livres de dívidas e purificadas.
Para encurtar o tempo do fiel no purgatório, existiam as indulgências, que eram certificados garantindo a remissão de parte do castigo a ser cumprido no purgatório, em troca de alguma boa ação (inicialmente, as indulgências foram criadas como incentivo para as pessoas irem às Cruzadas) ou de uma doação em dinheiro para uma boa causa. Os papas argumentavam que, como chefes da Igreja na terra, podiam usar o “excedente” das boas ações dos santos para emitir indulgências. Esse sistema já havia sido criticado por alguns pensadores, especialmente humanistas, muito antes de Lutero.
A partir de 1515, os questionamentos de Lutero começam a ganhar mais força. As indulgências foram vistas por muitos como um projeto de arrecadação de fundos para a construção da nova Basílica de São Pedro em Roma. Na Alemanha, a venda das indulgências ficou a cargo de um dos mais venais príncipes-bispos, Albrecht de Brandenburgo, que retinha uma parte das receitas para pagar os banqueiros que haviam financiado sua compra do arcebispado de Mainz. À frente da campanha estava o frei dominicano Johann Tetzel, que conduzia o negócio de forma eficiente, mas com um apelo materialista e grosseiro, usando o famoso slogan propagandístico: “Toda vez que uma moeda soa no cofre, uma alma sobe do purgatório ao paraíso.”
Esses métodos desonestos deixaram Lutero horrorizado, não só pela forma como Tetzel agia, mas também pela reação popular, que parecia ignorar completamente a necessidade de um verdadeiro arrependimento para obter o perdão genuíno. Isso só reforçou em Lutero a disposição para questionar os complexos mecanismos rituais exigidos para adquirir “mérito” aos olhos de Deus, levando-o a começar a pensar que a fé seria o único requisito para a salvação.
Dado que a Igreja, e especialmente o Papa, parecia não ter intenção de conter os abusos na venda das indulgências, focando apenas no lucro, sem considerar o arrependimento autêntico dos pecadores, Lutero começou a questionar seriamente se a Cúria estava apta a governar o "barco da cristandade" ou se ela própria necessitava de uma reforma profunda.
Na parte II, veremos como Lutero enxergava a questão dos sacramentos e do livre exame da Palavra de Deus, outros pontos que o levaram a romper com a tradição católica romana.